Ora, ora, não faltava mais nada. É aquela velha história do absurdo ter precedente na Bahia, mas no que me referirei foi em Salvador. Os edis da Câmara de vereadores aprovaram o Projeto de Lei 28/2025, que prevê multa para foliões que se fantasiarem de Jesus ou de freiras no carnaval, caso a caracterização seja considerada “pejorativa, sensual ou desrespeitosa”. Não mexa em nosso carnaval, ele é sagrado.
À primeira vista, pode soar como uma defesa do sagrado, um gesto de respeito às crenças de parte significativa da população. Mas, ao olhar com mais atenção, perceberemos o que está em jogo: o cerceamento da liberdade de expressar alegria, brincadeira, um avanço de uma espécie de moral religiosa sobre o espaço público.
O carnaval não é apenas uma festa. É, historicamente, o território da inversão, da paródia, da sátira. Haja vista a Mudança do Garcia, que associa diversas tribos... O riso é uma ferramenta de crítica social, quando não é para injuriar, caluniar... cometer crimes. No Brasil, o carnaval é o espaço em que o povo se autoriza a brincar até com os símbolos mais solenes. Ao censurar esse gesto, o projeto de lei atinge o coração da própria tradição carnavalesca.
A questão não se detém no imaginário das fantasias, o problema não para aí. O texto aprovado não se restringe ao carnaval. Ele abre uma brecha jurídica perigosa: quem decide o que é “desrespeitoso”? Hoje é o Cristo ou a freira no bloco; amanhã pode ser a charge política, a caricatura de autoridades... É o risco de transformar a sensibilidade particular de alguns em censura para todos.
O filósofo britânico John Stuart Mill, em seu livro Sobre a Liberdade, defendia que nenhuma sociedade pode se dizer livre quando impede opiniões e expressões incômodas. Mesmo aquilo que pode ofender, não sendo criminoso, será sempre a opinião de um segmento, o contrário traz uma ideia em nome da moral, e se coloca a sociedade sob tutela. A função do Estado é garantir a convivência plural, não blindar crenças religiosas do olhar crítico ou do humor popular. Afinal de contas laicidade também contempla ateísmo.
O Brasil é um Estado laico. Isso não significa hostilidade à religião, mas garantia de que nenhuma fé terá o privilégio de ditar regras sobre a vida coletiva. Quando o poder público cria leis para proteger símbolos cristãos de “uso indevido”, ele rompe esse pacto de neutralidade e privilegia uma visão de mundo em detrimento das demais. Um carnaval sem irreverência não é carnaval: é procissão. E quando o Estado decide o que pode ou não ser motivo de riso, o problema não está mais nos foliões que exageram na fantasia, o problema passa a ser um poder que tenta controlar até a diversão. Inadmissível. Inconstitucional. Vai cair no Supremo Tribunal Federal.
José Medrado possui múltiplas faculdades mediúnicas, é conferencista espírita, tendo visitado diversos países da Europa e das Américas, cumprindo agenda periódica para divulgação da Doutrina, trabalhos de pintura mediúnica e workshops, escreve para o BNEWS e o jornal A tarde.