Um vídeo que circula pela internet — adolescentes de uma escola cívico-militar do Paraná marchando ao som de uma música que celebra invasão de favela e corpos no chão — não deveria gerar polêmica. Deveria gerar alarme. Porque não há interpretação alternativa: colocar crianças para marchar ao ritmo da violência é um fracasso pedagógico monumental. E é exatamente o tipo de fracasso que o modelo cívico-militar tenta esconder atrás de fileiras impecáveis e retórica de ordem.
As desculpas oficiais são constrangedoras. Se foi uma aluna que pediu, se o monitor tentou interromper, se o vídeo é recente, se é de 2023… Nenhuma dessas hipóteses altera o essencial: adolescentes cantaram, sob supervisão adulta, uma narrativa de extermínio enquanto cumpriam um rito de disciplina escolar. É impossível minimizar o tamanho dessa aberração.
A reação das autoridades — centrada em procedimentos, sindicâncias e verificações — revela o que realmente sustenta esse modelo: uma fé burocrática na aparência de controle. O que não se vê é coragem para enfrentar a pergunta que deveria ser óbvia: por que jovens se reconhecem na linguagem da violência? O que a escola deixou de oferecer para que esse repertório se torne aceitável, até ritualizado?
É curioso que tantos defensores das escolas cívico-militares repitam, com convicção quase religiosa, que “uniforme resolve”. Fui aluno de escola militar durante toda minha educação básica. Sei perfeitamente quais são seus méritos — e eles existem. Mas sei, principalmente, o que essa crença esconde: disciplina sem projeto pedagógico é só coreografia. E coreografia nenhuma compete com a força cultural das ruas, das redes, das músicas que moldam imaginários antes que qualquer autoridade apareça para mandar “alinhar a coluna”.
O vídeo é didático: quando a escola se limita a impor ordem, ela perde a disputa pelo sentido. E perde feio. Abre mão da reflexão, do diálogo, da construção de consciência. Abandona o terreno onde a educação realmente acontece. Depois disso, indignar-se com adolescentes que repetem letras violentas é hipocrisia. Eles apenas ecoam o mundo que os cerca. Quem deveria mediar esse mundo — e não o faz — são os adultos.
E aqui está o ponto que muitos preferem ignorar: o modelo cívico-militar não falha apesar de sua lógica; falha por causa dela. Ele promete controle, mas produz uma pedagogia esquartejada: disciplina de um lado, educação do outro. Uma escola que ensina a obedecer, mas não a pensar, é presa fácil para qualquer narrativa pronta — inclusive as mais destrutivas.
O episódio não é um deslize. É um alerta. É a prova de que, quando a educação abdica de compreender a cultura dos jovens, essa mesma cultura ocupa o pátio, a marcha, a música — e transforma a escola numa caricatura de segurança que só funciona para quem nunca passou pela porta de uma. Responsabilizar adolescentes é covardia. O erro é adulto. O erro é estrutural. O erro é insistir na fantasia de que ordem é sinônimo de educação. Não é. E enquanto esse equívoco guiar políticas públicas, veremos mais vídeos como esse. Talvez menos chocantes, porque a sociedade vai se acostumando. E aí, sim, teremos perdido algo irreversível.
José Medrado possui múltiplas faculdades mediúnicas, é conferencista espírita, tendo visitado diversos países da Europa e das Américas, cumprindo agenda periódica para divulgação da Doutrina, trabalhos de pintura mediúnica e workshops, escreve para o BNEWS, Farol da Bahia e o jornal A tarde.