A laicidade no Brasil, que, na verdade, nunca foi levada ao pé da letra, está sendo corroída diante dos nossos olhos. E o mais assustador é que isso acontece com naturalidade, silêncio e até aplausos. O que deveria ser um princípio constitucional inegociável – a separação entre Estado e religião – virou apenas notícia, em meio ao avanço do fundamentalismo travestido de pauta de costumes.
Já estamos vendo, nas polícias militares, por exemplo, agentes obrigados a participar de cultos religiosos. Isso mesmo: obrigados. E não é exagero. Há relatos de oficiais, em diversos estados, que são coagidos a assistir a cerimônias evangélicas em ambientes institucionais, sob o pretexto de “eventos de formação” ou “momentos de espiritualidade”.
É preciso reforçar que laicidade não significa seguir o que professa a maioria. Ou seja: o Brasil não é cristão em sua totalidade; há também os agnósticos e os ateus. Em Salvador, essa imposição ganha contornos ainda mais revoltantes. A cidade mais negra fora da África, berço das religiões de matriz africana, vê seus espaços públicos e culturais serem invadidos por um projeto teocrático que finge ser apenas “expressão de fé” – mas não é fé, é dominação. Enquanto terreiros sofrem ataques, discriminação e abandono institucional, cultos ditos cristãos recebem verba pública, estrutura e a toda benesse de apadrinhamento. Não estamos falando de liberdade religiosa – estamos falando de hegemonia religiosa. Há uma diferença brutal entre garantir o direito de todos e privilegiar apenas alguns.
O que vemos é um projeto de poder que usa a Bíblia como escudo para passar por cima da Constituição. E o que dizer dos projetos de lei? Pululam nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas e até no Congresso, iniciativas que querem obrigar todos a viver sob uma ótica cristã. Sou cristão e vivencio a teoria na prática, mas, antes da minha crença, preciso defender a cidadania da forma mais plena possível. Querem transformar versículo em artigo, dogma em norma, púlpito em tribuna. Mas a laicidade incomoda quem quer controlar, quem quer poder dirigido.
Um Estado laico é um obstáculo para quem aspira impor costumes, criminalizar corpos, apagar culturas, ditar normas de comportamento – até de fantasias. Um Estado laico não persegue religião: ele protege todas. Um Estado teocrático, por outro lado, escolhe uma fé e transforma todas as outras em crenças inoportunas. E é isso que está em curso, ao meu sentir. O que está em risco não é apenas a laicidade – é a própria democracia. Quando o Estado se ajoelha diante do altar de um só grupo, ele se levanta contra todos os outros, e quem não vê isso ou está distraído – ou está compactuando, ou “reza” por interesses inconfessáveis.
José Medrado possui múltiplas faculdades mediúnicas, é conferencista espírita, tendo visitado diversos países da Europa e das Américas, cumprindo agenda periódica para divulgação da Doutrina, trabalhos de pintura mediúnica e workshops, escreve para o BNEWS e o jornal A tarde.