Eu custo a acreditar que recentemente a Constituição do Brasil aniversariou, último dia 05, e a cidade de São Paulo quebrando todo e qualquer princípio de respeito à laicidade do Estado brasileiro, faz um convite ao frei Gilson para conduzir uma celebração antes do show de virada de ano – Réveillon - na Avenida Paulista. Não é um gesto trivial. Ao contrário, é um ato que fere de maneira preocupante o princípio da laicidade do Estado — princípio este que não é detalhe, mas pilar constitucional da República.
Não se trata de intolerância religiosa, por eu ser de outra crença religiosa. Absolutamente. Nem de negar a importância da fé para milhões de brasileiros. O que está em jogo é o papel que o Estado deve desempenhar em uma sociedade plural: garantir a liberdade de crença e também a liberdade de não crer. Quando o poder público se associa institucionalmente a práticas de cunho religioso, está ultrapassando a linha que separa o público do confessional. E essa linha, uma vez borrada, é difícil de recuperar. Honestamente? Penso que a questão foi ideológica, não religiosa, mas de caráter político, considerando a retórica do clérigo. O argumento, no entanto, diz que se trata apenas de uma “oração”, de um gesto simbólico de agradecimento, é frágil e perigoso. É exatamente assim, com gestos aparentemente inofensivos, que se naturaliza a presença de um credo específico nas esferas oficiais. A laicidade não é posta à prova apenas quando há imposição aberta de uma fé; ela se desgasta lentamente, por meio de pequenos rituais legitimados pelo Estado, como se fossem neutros. Não são.
O réveillon da Avenida Paulista é um evento público, custeado com recursos de todos os cidadãos — religiosos e não religiosos, cristãos, umbandistas, espíritas, ateus. A presença institucional de uma celebração conduzidas por um líder religioso, a convite da Prefeitura, fere a neutralidade que o Estado deve manter diante da diversidade de crenças que compõem o país. Não há problema em que grupos religiosos celebrem a virada do ano em seus templos, ruas ou praças. O problema surge quando o poder público legitima uma expressão religiosa específica dentro de um evento oficial, transformando o que deveria ser uma celebração plural em um ato de conotação confessional-ideológica.
O que parece pequeno — uma oração, um agradecimento, um “momento de fé” — é, na verdade, a ponta de um processo de erosão constitucional. A laicidade não se perde de uma vez; ela se perde aos poucos, quando o Estado esquece que sua função não é representar nenhuma fé, mas garantir espaço para todas. Defender o caráter laico do Estado não é hostilizar a religião. É, justamente, proteger a liberdade religiosa — de todos. Quando o poder público escolhe uma voz religiosa, está dizendo, ainda que implicitamente, que algumas crenças têm mais espaço que outras. E isso, sim, é um atentado à democracia.
José Medrado possui múltiplas faculdades mediúnicas, é conferencista espírita, tendo visitado diversos países da Europa e das Américas, cumprindo agenda periódica para divulgação da Doutrina, trabalhos de pintura mediúnica e workshops, escreve para o BNEWS e o jornal A tarde.